Haiti, quando um estado entra em colapso
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Haiti, quando um estado entra em colapso

Jul 07, 2023

Algumas manhãs, ao sair de casa para trabalhar, Lude deve evitar a rua e atravessar as propriedades dos vizinhos, escalando os muros que os separam, até conseguir sair de Clercine, seu bairro. Assim que conseguir sair – depois de vários saltos – ela finalmente poderá andar normalmente e pegar o taptap, uma espécie de microônibus que a levará ao escritório.

Lude – pseudônimo dado por esta mulher de 30 anos – permite que seus vizinhos façam o mesmo com sua propriedade. É como um acordo de solidariedade. Certa manhã, em Clercine, homens e mulheres – vestindo camisas, gravatas e saias – escalam os muros para sair de seu próprio bairro. Esta realidade cruel é representativa de Port-au-Price, capital do Haiti. Clercine está na linha de frente da batalha, situado na fronteira entre duas gangues que aspiram controlar a área. Chen Mechan – que poderia ser traduzido do crioulo (língua oficial do país) como “cães loucos” – e 400 Mawozo são as duas gangues de rua que lutam por território. Às vezes, eles atiram uns nos outros com rifles e pistolas. Eles saem em patrulha, procurando pessoas para roubar. Durante esses momentos de conflito, Lude e seus vizinhos escalam as muralhas para evitar problemas.

Lude já morou em outro bairro próximo, La Croix-des-Bouquets. Certa manhã, em 2019, ela estava passeando com o tio quando dois membros de uma gangue se aproximaram dela. Eles roubaram tudo. Assim que terminaram, eles atiraram no rosto do tio de Lude. “Pelo prazer”, lembra ela. A mãe dela ouviu os tiros vindo de casa. Após esse assassinato, Lude e sua família mudaram-se para Clercine. Anos depois, começou o confronto entre os dois grupos armados. Especificamente, na noite de 23 de abril de 2022, quando centenas de moradores foram mortos indiscriminadamente. “Um massacre”, diz Lude.

“Se, há alguns anos, me tivessem dito que eu teria de [subir muros para chegar ao trabalho], eu não teria acreditado”, diz Lude, sentado num banco da igreja. Ela escolheu este lugar para falar, longe da vigilância das gangues. Para chegar aqui, tivemos que procurá-la em Clercine. Mas quando chegamos ela nos chamou: “Não venham. Espere por mim duas ruas abaixo. Os gangsters montaram um posto de controle.” Paramos.

Ela nos conta que a vida em Porto Príncipe é impossível. “Não é a vida”, ela sussurra. “As gangues assumiram o controle – não temos polícia nem governantes. Há sequestros, tiros... Não faço nada além de estar em casa ou no trabalho. Não há futuro neste país.”

“Sinto falta de poder descer a rua, de poder sair, de andar com calma. Sinto falta de não ter medo”, Lude suspira, antes de se despedir.

“Se você pudesse, você deixaria o país?”

"Amanhã. Desculpe - hoje. Eu iria embora hoje.”

Há uma guerra em Porto Príncipe. Existem linhas de frente, grupos armados e civis deslocados. Mulheres e meninas são estupradas; homens são mortos aos milhares.

A única diferença é que esta guerra não foi declarada. Não oficialmente, pelo menos. E isto tem enormes desvantagens, sendo a principal delas o facto de nenhum país estrangeiro estar a ajudar os haitianos enquanto o seu país sangra até à morte.

A raiz do problema pode ser encontrada na quase total ausência do Estado. Este colapso social começou em 2010, da forma mais simbólica possível: um terramoto devastador deixou Porto Príncipe em ruínas, com mais de 300.000 mortos. Foi um toque final macabro ao que já era uma tendência herdada da década de 1960, quando François “Papa Doc” Duvalier se estabeleceu como ditador vitalício. Ele foi sucedido 20 anos depois por seu filho, “Baby Doc”. Entre pai e filho, lançaram um regime de terror que, segundo as Nações Unidas, deixou pelo menos 50 mil mortos no país. A polícia secreta – conhecida como Ton-Ton Macoute (bicho papão) – continuou a matar mesmo anos após o fim do regime Duvalier, sob a forma de grupos paramilitares. Apesar da chegada da democracia, a instabilidade e a corrupção consolidaram-se no Haiti.

Em agosto de 2021, outro terremoto devastador atingiu o país. E, apenas um mês antes, o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado por mercenários colombianos em sua casa – um ataque em que se misturaram intrigas políticas, interesses comerciais e assuntos que começam no Haiti e terminam em Washington. Daquele dia até hoje, o Haiti esteve sem chefe de Estado. Não há um único membro eleito do parlamento. Na verdade, o edifício legislativo nem sequer existe – ruiu durante o terramoto e foi posteriormente abandonado. No papel, o primeiro-ministro Ariel Henry é o chefe de Estado interino, embora esteja rodeado por uma camarilha muito pequena, com a maioria da população a opor-se a ele. No Haiti, em termos reais, ninguém está no comando.